Afinal, o que é um ritual? Ou por que você deveria ir na festa da firma

Rituais, desde tradições indígenas a reuniões corporativas, são essenciais para transmitir valores e construir laços, mas enfrentam desafios na rápida era digital.

Na fronteira do Amazonas com o Pará, um ancião da tribo Sateré-Mawé observa um grupo de jovens dançar em círculo. Um a um, os rapazes se aproximam, colocam as mãos em luvas de palha e fazem o melhor que podem para resistir às picadas da formiga tucandeira. Dezoito horas depois, a dor vai passar e os curumins terão chegado à vida adulta. Enquanto isso, em São Paulo, um gestor abre uma sala no Zoom. A diretoria da empresa aprovou o orçamento do ano que está por vir. A chamada tem como objetivo alinhar a equipe, traçar um plano de ação e definir o ritmo do trabalho até a primeira entrega.

O que o Waumat dos Sateré e um kickoff de projeto têm em comum? Apesar do abismo cultural que separa uma cerimônia indígena de uma prática corporativa, não seria absurdo usar a palavra ritual para descrever qualquer  dos dois cenários. A diferença entre os casos, contudo, sugere uma segunda questão: afinal, o que é um ritual?  

1. Uma palavra, duas definições

Para antropólogos e cientistas da religião, rituais são apelos a alguma força maior através da encenação de mitos que expressam a tradição de um povo, mas, convenhamos, é bem improvável que você veja isso acontecer dentro de um escritório. Não por acaso, sociólogos que investigaram o dia a dia corporativo chegaram a outra conclusão: ritual é repetição. Por esse ponto de vista, do almoço de negócios ao cafezinho no final da tarde, das reuniões do conselho às conversas de corredor, o cotidiano dá forma à cultura de uma empresa sinalizando aos colaboradores quais comportamentos são considerados adequados ou não.
Acontece que tratar a ideia como um sinônimo de rotina pode ser uma armadilha. Pense bem: se toda ação corriqueira é um ritual, qual ritual importa de verdade? Generalizar o conceito é correr o risco de diluir sua importância para o sucesso das organizações. Sem dúvidas, a recorrência é uma característica importante dos rituais corporativos. Uma, mas não a única. Da porta do escritório para dentro, os rituais tomam forma de práticas padronizadas, previsíveis e de fato repetitivas, mas, ainda assim, cheias de significado. Quando o assunto é cultura, regularidade e simbolismo não se anulam no horário comercial.

2. Ligando os pontos: o papel dos rituais

Mesmo quando incorporados à rotina ao ponto de quase passarem despercebidos, os rituais sempre cumprem uma função: comunicar os valores compartilhados pelo grupo, servir como uma espécie de janela com vista para as engrenagens sensíveis da organização. Uma festa de aposentadoria não é simplesmente um protocolo de despedida. É uma celebração da lealdade, uma demonstração pública de gratidão, um lembrete do caráter transitório da vida profissional, tudo ao mesmo tempo. Os rituais dizem aos colaboradores algo sobre a cultura das empresas. Assim, dão sentido ao trabalho, conferem ao tempo de cada membro do time significados que extrapolam a troca serviço-remuneração.

Até as organizações mais zelosas tendem a causar algum nível de ansiedade no dia a dia. Não se trata de uma falha de gestão, mas de uma consequência da ambiguidade do mundo corporativo. Nas empresas, desempenho individual e metas coletivas, parceria e competição, planejamento e improviso, andam lado a lado. Sob esse pano de fundo, os rituais ajudam o coletivo a navegar pela contradição. Enquanto sua capacidade de expressar valores compartilhados elimina dúvidas sobre como cada um deve agir, seu poder de construir laços auxilia a formação de grupos mais solidários, mais estáveis, mais harmônicos. No processo, a tensão dos ambientes de negócios não desaparece, mas, de certo, se ameniza.

3. Os rituais, hoje: uma prática em extinção?

Das primeiras expedições antropológicas até os dias de hoje, o mundo não só girou. Virou de cabeça para baixo. Às vésperas de 2024, profissionais de três gerações diferentes se cruzam no mercado de trabalho, inteligências artificiais criam textos e imagens sob demanda, apartamentos funcionam como escritórios das nove às cinco. Enquanto a tecnologia avança cada vez mais rápido, a sociedade responde à altura se permitindo transformar e ser transformada. A história dos rituais é mais longa do que a Históriacom H maiúsculo, mas o contexto justifica a provocação: e se essas práticas estiverem correndo risco de extinção?

Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, há um descompasso entre o ritmo dos rituais e a velocidade das tecnologias de comunicação. Enquanto notificações incessantes demandam atenção 24/7 aos smartphones, um fluxo desenfreado de novidades sustenta ciclos cada vez mais rápidos de consumo de conteúdo nas plataformas de streaming e mídias sociais. Em meio a tanto ruído, os rituais podem estar sendo engolidos por um mar de informações incapaz de produzir sentido ou construir vínculos comunitários. A pressa é inimiga da conexão. Quando a urgência é permanente, o que está em jogo é a profundidade das relações.

Seja nas práticas cotidianas do ambiente corporativo ou nos eventos mais pontuais da vida profissional, os rituais desempenham um papel crucial na transmissão de valores e na construção de laços entre os membros de uma organização. Quando a era digital desafia a cadência secular dessas práticas, contudo, a avalanche de informações trazida pela tecnologia coloca em xeque a qualidade das conexões. Nesse contexto, construir estratégias de preservação dos rituais emerge como um desafio determinante para o desenvolvimento de culturas organizacionais que coloquem as relações humanas em primeiro lugar. Mas e você?

Não é necessário ter muitos anos de carreira para saber que, no final do ano, nem todo compromisso profissional acontece dentro do expediente. Às vezes é um happy hour, às vezes um amigo oculto. Pode ser um baile de gala com convites para toda a família ou só uma conta de almoço paga com o cartão do Financeiro. Depois de 52 semanas de trabalho, é normal que não sobre muita energia na bateria social, mas é importante fazer parte. Não pelos tapinhas nas costas. Pela chance de mostrar que a conexão importa. Afinal, o que é um ritual?

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